Sem ter como alimentar os filhos direito, a goiana Kelly Borges Almeida, na época com 22 anos, trabalhava no supermercado quando recebeu a proposta de trabalhar em um restaurante na Europa. Com o dinheiro que ganharia, poderia dar uma vida melhor a família e, na volta, abrir um negócio para ela e a mãe. Deixou então as crianças com a mãe e foi. Chegando lá, descobriu que havia sido enganada. Junto a outras estrangeiras traficadas, ela teria que se prostituir numa boate de luxo, de onde não poderia sair. Sete meses depois, conseguiu fugir e foi para Portugal, onde conheceu seu atual marido
“Fui mãe aos 14 anos. Com 22, já tinha três filhos e, abandonada pelo pai das crianças, voltei a morar na casa da minha mãe. Era um lugar pequeno e bastante humilde, ela vivia lá com meus dois irmãos mais novos e lavava roupa para fora. Disposta a trabalhar no que fosse preciso para tentar botar comida na mesa, consegui um trabalho em um supermercado como demonstradora de produtos de cabelo. Ganhava pouco e trabalhava até 10 horas por dia em pé, sem pausa nem para o almoço. Já estava havia quase cinco meses noe emprego, quando uma moça nova entrou para a equipe e logo puxou conversa comigo. Ela dizia que estava ali de passagem, que um primo seu era dono de dois grandes restaurantes na França e que adorava contratar brasileiras porque eram simpáticas e desinibidas. Parecia minha amiga e, sabendo da minha dificuldade financeira, me convidou então para trabalhar lá com ela. O primo pagaria minha passagem, cuidaria da minha documentação e me adiantaria um dinheiro para minha mãe cuidar dos meus filhos, até eu começar a receber. Disse ainda que ele me pagaria quatro vezes mais do que eu ganhava no supermercado, que teria um alojamento para ficar e a alimentação seria por conta dele. Parecia um sonho. Aquela mulher só podia ter caído do céu. Minha mãe topou ficar com as crianças por um ano, tempo suficiente para juntar uma grana e voltar.
Em 20 dias, me organizei para viajar. Minha amiga me levou para tirar passaporte em Brasília, assinei contrato em cartório, tudo certinho. O mais difícil foi deixar meus filhos para trás. O mais velho tinha 4 anos, a do meio 2 e o caçula, só 8 meses. Nossa despedida foi de partir o coração. Chorei o voo inteiro, mas estava segura. Eles mereciam um futuro melhor.
Viajamos com outra moça que não conhecia, Simone, e desembarcamos na Itália, onde o primo dela nos buscaria de carro. Chegando ao aeroporto, ele já nos esperava em uma pequena van de vidro escuro. Além de nós três, haviam duas colombianas e mais dois homens enormes e mal-encarados. Assim que entramos no carro, os caras pegaram nossos passaportes, segundo disseram, para a nossa segurança. Estávamos em 2002, eu ainda não tinha celular.
Viajamos umas três horas até avistarmos uma enorme montanha com poucas casas bem distantes umas das outras. Esperava por uma rua mais movimentada, mas tudo bem. Quase no topo da montanha, avistei um casarão lindo, todo imponente. Descemos do carro e fomos encaminhadas para o fundo da mansão. Entramos por uma porta enorme fechada por cadeados gigantes e descemos umas escadas até chegar no sótão em que ficaríamos alojadas.
No porão, amontoadas, havia 16 mulheres de todos os lugares. África, Ucrânia, Venezuela, Colômbia, Espanha, Argélia. Umas bebendo, outras cheirando cocaína, várias acorrentadas pelas pernas com rostos assustados. Olhei para a minha amiga e disse: ‘Não quero e não vou ficar aqui’. Então, como se nunca tivesse me conhecido, ela falou para um dos seguranças: ‘A mercadoria está entregue, agora vamos falar de negócios’. Virou as costas e saiu rebolando com os caras. Fiquei tão perplexa, que não tive reação nenhuma. Nessa hora, a minha ficha caiu.
Dois homens armados chegaram então para explicar as regras da casa – eram quatro seguranças ao todo e só um falava português. Nos apresentaram uma folha com contas e nos disseram que, a partir daquele momento, teríamos que trabalhar para pagar o que devíamos a eles: documentos tirados, voos, dinheiro entregue a nossa família etc. Eu apenas olhava, estava atordoada, mal conseguia raciocinar. Andava por aquele lugar, de um lado pro outro, com beliches, sofá-cama e colchonetes espalhados por todo canto. Tinha ainda uma sala grande e um único banheiro. O ambiente fedia.
Encostei num canto, abaixei a cabeça e comecei a chorar, pensando que nunca mais veria meus filhos novamente. Um dos seguranças disse então que só iríamos começar a trabalhar no dia seguinte. Simone e eu nos abraçamos e ficamos ali, com muito medo, pensando como sairíamos daquela situação. Deitamos em um colchão de casal que tinha no chão e dormimos umas oito horas seguidas.
No dia seguinte, chamaram a nós e as duas colombianas que chegaram conosco para conhecermos nosso local de trabalho. Era uma boate enorme, luxuosa. Tinha salas privadas, dois grandes bares, uma cabine onde ficava o DJ, palcos de strip, uma pista de dança, várias mesas de jogos e máquinas de cassino. Perguntei o que teríamos que fazer ali. Arrogante, o segurança respondeu que faríamos sexo com os clientes e que deveríamos tratá-los muito bem. E passou uma lista cheia de informações e instruções sobre preços, tempo do programa e outros detalhes. E disse que, se tentássemos fugir ou contar para algum cliente, matariam nossa família. Nesse momento, vi que não teria saída a não ser fazer o que eles mandavam.
De volta ao porão, recebi um kit com gel lubrificante e 20 preservativos. Cada menina tinha que atender, por noite, o mínimo de oito clientes — umas atendiam até 17. Simone e eu começamos, então, a trabalhar muito para pagar logo a nossa dívida e ir embora dali. Pois quanto mais a gente trabalhava, mais devíamos. Era desesperador imaginar o que minha mãe estaria pensando em Goiás, sem notícias minhas.
Simone passou a usar pó e a beber demais. Eu dizia que ela precisava se manter sã para sair dali. Ela chorava, prometia não mais fazer nada daquilo e voltava usar drogas. Depois de um mês, minha companheira de viagem já tinha mudado completamente e me vi ali sozinha, mas sempre com a esperança de fugir. As poucas meninas com quem eu conversava eram da Angola e Moçambique. Só vi mais uma vez mulher que nos levou para aquele inferno, e nunca mais.
Os dias fora passando e eu cada vez mais triste, sem saída. Comia pouco e, de tanto me prostituir, estava magra demais. Mas conquistei um importante cliente da casa e, dois meses depois de ter chegado, consegui ligar para casa. Menti que estava bem, claro, mas ouvir a voz da minha mãe me deu ainda mais forças para tentar escapar de lá. E, nesse momento, entendi que aquele homem seria meu passaporte para escapar daquela roubada.
Mais cinco meses e, no dia do seu aniversário, ele me convidou para jantar em sua casa. Respondi que adoraria, mas dependia da liberação da chefia. Ele disse que pagaria qualquer valor por isso e foi falar com o pessoal da boate. Era uma quinta-feira de abril, o ano, 2003, e o cliente combinou que seguranças me levariam até ele às sete da noite. Claro, os brutamontes tinham que ir junto. O combinado era eles ficarem na porta da casa, garantindo que eu não fugisse dali. Peguei as fotos da família que levava comigo, meu documento de identidade brasileiro, dei um beijo em Simone e, cheia de coragem, fui.
No caminho, prestei atenção a todos os detalhes para traçar meu plano de fuga. Meu cliente morava numa área urbana, a meia hora da boate, em umas dessas construções antigas. O segurança entrou, olhou a casa e disse que me esperaria do lado de fora. Tinha só duas horas, tinha que ser rápida.
O cliente já estava à minha espera com a mesa posta, champanhe na taça, tudo do bom e do melhor para comemorar seus 60 anos. Ele me parecia um cara solitário. Era separado, sem filhos e vivia ali sozinho. Falei que precisava ir ao banheiro e fui vistoriar a casa para checar as saídas e janelas.
Durante o jantar, comi pouco e fingi que bebi. Não podia correr o risco de ficar alta e perder a minha única chance de voltar a ser livre. Já o aniversariante bebeu além do limite, e eu trabalhei para isso. Precisava que ele não estivesse tão atento para tentar fugir. Sempre carinhoso, me fez várias promessas. Disse que iria me tirar daquele lugar para eu viver com ele, que pretendia me comprar do chefe da boate. Transamos e ele continuou bebendo. Misturou vinho, champanhe e uísque. E acabou pegando no sono depois do sexo.
Diante da minha grande oportunidade, me vesti, peguei todo o dinheiro que ele tinha na carteira (que não era muito, mas já ajudava), vesti um sobretudo dele, coloquei seu gorro, cachecol e luvas. E saí pela porta dos fundos quietinha, com o coração na boca. Já na rua, comecei a correr sem olhar pra trás. Corri uns oito quarteirões, até encontrar um ponto de táxi. Foi difícil a comunicação com o taxista que estava na frente da fila, mas, por sorte, um dos motoristas era português e veio intermediar a conversa. Pedi que ele me levasse até a estação de metrô mais próxima ou à rodoviária.
Entrei no carro, e comecei a chorar desesperadamente. Muito calmo, ele me deu uma garrafinha de água e pediu que eu me acalmasse. Então contei tudo. Disse que havia sido traficada e obrigada a me prostituir. Que não conhecia nada nem ninguém na Europa, que estava fugindo e que precisávamos ser ligeiros porque logo os seguranças dariam conta do meu sumiço e iriam atrás de mim. Eu nem sabia, ao certo, que lugar era aquele. Ele me disse que estávamos próximos à divisa da França com a Itália, e que a máfia italiana tinha uma forte atuação ali.
Silas Aguiar / Descontrair.com
Fonte: Marie Claire / G1.com